Supremum - Incubação

 


Nas profundezas da montanha que abrigava a base da Fundação GENOS, o silêncio era absoluto, exceto pelo zumbido constante de servidores supercondutores e pelas vozes digitalmente moduladas de inteligências artificiais que monitoravam as variáveis dos experimentos em andamento. A temperatura era mantida em 18°C constantes. Nenhum som externo penetrava ali. Era um santuário tecnológico... e uma prisão científica.

O grande salão de comando — chamado apenas de Núcleo Central — abrigava doze estações de controle com monitores circulares e hologramas suspensos. No centro, elevado sobre uma plataforma de metal fosco, encontrava-se o homem que todos ali chamavam apenas de Doutor Jota.

Ninguém sabia seu nome completo. Ninguém perguntava. A maioria dos jovens cientistas sequer o via. Aqueles que tinham acesso direto falavam com temor reverente, como se sua presença representasse tanto a cura quanto a condenação.

Doutor Jota usava um terno preto impecável, a barba curta e bem cuidada, olhos verdes e frios. Ele parecia feito de silêncio. Raramente falava alto. Suas ordens vinham por meio de gestos ou olhares, mas cada movimento carregava autoridade incontestável.

Naquela manhã, ele estava diante de uma projeção tridimensional: um mapeamento neural completo do chamado Sujeito 47 — Andrew Menning.

— “O padrão de crescimento está além do estimado.” — disse uma jovem cientista, com a voz tensa. — “A sinapse energética que ele exibiu durante o incidente na floresta excedeu o pico de tolerância de qualquer outro meta-humano documentado. Estamos diante de algo... original.”

Doutor Jota não respondeu imediatamente. Observava as linhas de energia pulsando em verde ao redor do modelo tridimensional da mente de Andrew. As ligações cerebrais acendiam e apagavam como circuitos vivos. Não havia interferência química. Não havia manipulação induzida. Era genuíno.

— “E quanto ao comportamento?” — perguntou ele, finalmente.

— “Estável. Corajoso. Protetor. Extremamente leal aos seus amigos. Mas...” — ela hesitou — “...também impulsivo. E se sentir que estão sendo ameaçados, pode liberar níveis de energia descontrolados. Ele ainda não conhece seus próprios limites.”

Doutor Jota manteve o olhar fixo nas imagens por alguns segundos antes de falar:

— “A chave para controlar um ser como ele não está na força... Está nos laços. Nos vínculos.”

A cientista engoliu em seco.

— “O senhor está sugerindo... atacar os amigos?”

Ele virou-se lentamente para encará-la. Sua voz soou como um eco controlado.

— “Estou dizendo que... a estabilidade emocional dele depende de fatores externos. São essas peças que devem ser testadas primeiro. Se ruírem... saberemos o quanto ele aguenta. E se ceder... não será útil.”

Nesse momento, as portas automáticas do salão se abriram. A atmosfera esfriou perceptivelmente quando o Diretor Supremo da Fundação entrou. Uma figura encapuzada, mais alta que todos os presentes, vestindo um manto tecnológico feito de fibras escuras que os sensores não conseguiam rastrear. O tecido ondulava com um magnetismo próprio. Ninguém sabia seu nome — apenas seu codinome interno: Senhor Espectral.

As vozes cessaram. Todos se afastaram instintivamente, como se a presença daquela figura drenasse o calor do ambiente.

O Senhor Espectral parou ao lado de Doutor Jota. Sua voz, distorcida e profunda, escapou do capuz:

— “O Projeto Núcleo está atrasado. Sujeito 47 deve ser contido. Agora.”

Doutor Jota manteve a postura firme.

— “Se for contido agora, o poder que despertou pode reagir com violência. Ainda não conhecemos os limites.”

— “Você teve tempo demais. Ele está reunindo aliados. Acha que não vemos? Ele não está se isolando... está se armando. Sentimentalismo não cabe aqui, Jota.”

Silêncio. Por um segundo, houve uma sombra de hesitação no rosto de Doutor Jota. Ele conhecia aquelas palavras. Já as ouvira antes, num passado distante, quando ainda acreditava que poderia salvar o mundo com ciência.

— “Você tem algo em mente?” — perguntou, recuperando a frieza.

O Senhor Espectro assentiu lentamente.

— “Sim. Vamos libertar o Protocolo Maximus. Os três primeiros Sujeitos Neuromodificados estão prontos para campo.”

Doutor Jota cerrou os punhos atrás das costas.

— “Eles não foram testados em ambientes urbanos. Ainda são instáveis.”

— “E por isso serão eficazes. A instabilidade é a melhor isca para o poder emocional de Andrew. Coloque-os nas ruas. Perto do alvo. E observe como ele reage.”

Uma pausa. Depois, mais uma ordem:

— “E se algum dos amigos interferir... autorize força letal.”

O Senhor Espectral se afastou, desaparecendo pelas sombras do corredor lateral. Um silêncio opressivo permaneceu no ar.

Doutor Jota permaneceu imóvel por um tempo. Depois, se aproximou de uma das janelas blindadas que davam para o subnível de contenção. Lá embaixo, três jovens — Kira, Caio e Léo — estavam presos em câmaras de estimulação neural, sendo reprogramados gradativamente.

Ele os observou, em silêncio. Os olhos pararam por mais tempo sobre a jovem de pele morena clara, cabelos pretos lisos até os ombros e olhos violeta.

Kira.

Uma sombra de culpa passou por seus olhos. Mas logo foi substituída por determinação. Ele tocou um pequeno painel oculto no pulso. Uma tela privada se abriu com uma única imagem: Andrew, ainda criança, no colo de sua mãe. Ao fundo, ele próprio — sorrindo. Um tempo que já parecia pertencer a outro homem.

Você não deveria estar envolvido nisso... meu filho. Mas se eles querem usá-lo... terão que me enfrentar. Mesmo que nunca descubra quem eu sou agora.

Doutor Jota fechou a tela e se virou para o comando geral.

— “Iniciar o protocolo NEUROMAX. A caçada vai começar.”

O corredor era longo, metálico, frio. As luzes brancas vibravam com um zumbido quase hipnótico. Câmeras nos cantos registravam cada movimento dos três jovens que caminhavam lado a lado, envoltos em silêncio artificial.

Kira Voss seguia à frente. Seus olhos violeta pareciam apagados, vazios, sem o brilho de outrora. Em outro tempo, fora uma das alunas mais promissoras do curso de Psicologia da Universidade Federal. Agora, movia-se como uma marionete treinada, com precisão, sem hesitar. Vozes mecânicas em seus ouvidos repetiam comandos enquanto suas memórias verdadeiras eram suprimidas por sessões constantes de condicionamento neural.

Atrás dela, Caio Ferraz andava como uma sombra viva. Ele não corria mais com liberdade; agora, seus movimentos eram calibrados, calculados. Estava sempre oscilando entre a solidez e a intangibilidade, como se não pertencesse mais a um único plano de existência. Antigo atleta e amante da velocidade, perdera o nome e a identidade. Restava apenas o “Caçador Sigma-2”, designação tática.

Léo Archanjo vinha por último. Seu corpo, outrora humano, era agora um mosaico de placas biomecânicas que se moldavam a cada comando. As partes metálicas substituíram os ombros, o braço direito e parte do torso. Seu coração ainda batia, mas era difícil dizer o que nele ainda pulsava por escolha própria. Dentro de sua mente, o calor da energia térmica que comandava era um lembrete de que a dor havia se tornado combustível.

Na sala de observação, olhos acompanhavam cada segundo.

Doutor Jota mantinha as mãos cruzadas atrás das costas, imóvel diante dos monitores. Usava um terno preto impecável. Seu rosto maduro era escondido parcialmente pelas sombras, mas os olhos demonstravam algo mais do que mero interesse científico.

— "Estabilização cerebral dentro dos parâmetros... porém... Kira está demonstrando atividade prefrontal além do aceitável. Está... resistindo de forma inconsciente?" — murmurou um dos cientistas ao lado.

Doutor Jota não respondeu. Limitou-se a ampliar o monitor central, onde Kira piscava por um instante mais lento que o normal — como se, em algum lugar dentro dela, algo estivesse tentando lembrar.

As sessões de recondicionamento começaram logo após o sequestro dos três. Um após o outro, haviam sido levados de suas rotinas por agentes da GENOS, sob ordens superiores. Submetidos a semanas de privação sensorial, mensagens subliminares e descargas neuroquímicas, seus cérebros foram moldados. As memórias mais emocionais — família, amigos, valores — foram enterradas sob camadas de obediência.

Mas sempre havia rachaduras.

Dentro da cela de isolamento mental, Caio havia desenhado no chão com os dedos um padrão repetido. Um circuito? Um símbolo? Ou apenas o eco da mente tentando lembrar da liberdade?

Léo, em sessões de reprogramação física, reagia com agressividade quando escutava fragmentos de músicas antigas — canções que talvez sua irmã colocasse no rádio, antes de sumirem todos os sons humanos em sua vida.

Kira era a mais instável. Mesmo sob controle, sua mente produzia ilusões involuntárias. Na noite anterior, ao entrarem em modo de espera, ela projetou um campo de distorção no dormitório. Uma sala de aula, quatro amigos, um toque de mãos debaixo da mesa... A ilusão durou dois segundos. Foi apagada. Mas Doutor Jota viu. E não esqueceu.

— “Ela está se lembrando.” — disse ele, sem encarar ninguém.

— “Não é relevante. As memórias não resistirão à próxima indução.”

— “Talvez não devam resistir mesmo...” — completou o homem. — “Mas é inevitável que uma fagulha permaneça.”

A porta da sala se abriu. A temperatura caiu como se o próprio ar estivesse sendo drenado.

Entrou uma figura alta, envolta num manto escuro com bordas metálicas. O rosto estava oculto por uma máscara lisa, negra, sem feições. Onde deveriam estar os olhos, dois círculos de energia arroxeada pulsavam.

Senhor Espectro.

O verdadeiro comandante das Operações da GENOS.

Sua voz ecoou sem mover os lábios.

— “Eles estão prontos. As primeiras caçadas provaram sua eficácia. Mas não podem falhar de novo. Os alvos precisam ser abatidos ou capturados.”

Doutor Jota manteve-se imóvel.

— “Eles não são máquinas. São jovens. Estão vivos... têm ecos de humanidade.”

Senhor Espectro se aproximou, lento, como a morte em vigília.

— “Ecos são ruídos. Eu elimino ruídos.”

O silêncio caiu como uma sentença.

Mais tarde, sozinho, Doutor Jota reviu os vídeos de treinamento. Na tela, via-se Andrew flutuando na floresta — olhos verdes acesos, energia pulsando. Depois, os jovens NEUROMAX em ação. Kira comanda ilusões, Caio atravessa uma parede, Léo incinera um drone de ataque.

Naquele instante, uma imagem antiga surgiu na mente de Jota: um menino recém-nascido, nos braços de uma mulher morena de olhos ternos. A lembrança do nome Andrew quase escapou dos seus lábios.

— “Eu prometi que o protegeria.” — murmurou, sozinho.

E enquanto os três jovens eram postos novamente em animação suspensa até a próxima missão, uma coisa era certa: o campo de batalha já não era mais apenas físico. Era também pela alma.

E naquela guerra, o tempo estava se esgotando.

Postar um comentário

0 Comentários