A chuva caía fina sobre a cidade, como um sussurro de alerta vindo do céu. As sirenes soavam ao longe, abafadas pelo rugido dos helicópteros que sobrevoavam o perímetro urbano. Pelas vielas, corredores e ruas laterais, as luzes vermelhas dos drones de contenção ziguezagueavam como olhos de predadores.
No subsolo de um edifício abandonado, paredes revestidas de cimento úmido e ferrugem, Kira acordava com os músculos ainda tensos, o corpo moído e a mente em frangalhos. Sentia o gosto de sangue seco nos lábios, o pulso acelerado e a energia instável reverberando nas pontas dos dedos. O último confronto ainda pulsava em sua memória: a fuga, os gritos, os disparos, o olhar cinzento de Número 06 — aquele estranho com o qual ela sentira uma conexão inexplicável.
Ao abrir os olhos, uma tênue luz azulada piscava no teto rachado do esconderijo. Ela se sentou com dificuldade, a respiração entrecortada. Do outro lado da sala, Número 06 estava de pé, observando-a em silêncio. O rosto dele era calmo, mas os olhos carregavam uma sombra antiga. Havia marcas de batalha em sua pele pálida, algumas ainda em processo de regeneração metálica. Ele não parecia hostil. Mas também não parecia seguro.
— Onde estamos? — perguntou Kira, quebrando o silêncio espesso.
— Ainda dentro do setor três, nas zonas industriais. Eles não nos rastrearam até aqui... por enquanto.
Ela se levantou com esforço. O corpo latejava. Mas o que a incomodava mais era aquela sensação crescente em seu peito — como se algo estivesse despertando, algo enterrado profundamente.
Do outro lado da cidade, no subterrâneo de uma instalação secreta conhecida como Complexo Áureo, Doutor Jota fitava as telas holográficas diante de si. Cada monitor exibia uma imagem distinta: drones sobrevoando a cidade, leituras de ondas energéticas instáveis, o mapa dos corredores internos da base. E, no centro de tudo, o sinal biocodificado de Kira, agora emitindo em padrões que ele não via desde… o Projeto Origem.
Ao seu lado, Senhor Espectro permanecia imóvel como uma estátua feita de sombras. Seus olhos eram dois buracos negros por trás da máscara ornamentada, e sua presença carregava uma gravidade opressiva.
— Eles estão despertando — disse o espectro, sua voz como um trovão distante em câmara fechada.
Doutor Jota não respondeu de imediato. Seus olhos verdes escuros estavam fixos em uma curva crescente na tela — os níveis de energia neurossináptica de Kira e Número 06 estavam convergindo.
— Eles foram projetados para isso — murmurou, mais para si do que para seu companheiro. — Mas não deveriam... não ainda.
— Acordar é inevitável. Os caçadores foram acionados. Os outros também começarão a manifestar.
— E Andrew? — indagou Jota, virando-se com expressão mais dura. — Ele está pronto?
Senhor Espectro não respondeu. Apenas virou o rosto para uma nova imagem projetada: Andrew, saindo de casa ao lado de Paulo. Eles ainda não sabiam, ainda estavam longe da verdade. Mas o elo entre os jovens estava se estreitando. E a força que se aproximava exigiria mais do que poderes.
Exigiria alma.
A escuridão do abrigo improvisado mal escondia os olhares de desespero que cruzavam entre os quatro. As paredes descascadas do porão de uma oficina abandonada abafavam os sons da cidade sitiada. Lá fora, helicópteros sobrevoavam, drones zumbiam, e o eco dos alto-falantes repetia ordens em loop:
“Toque de recolher em vigor. Todo civil deve permanecer em seu domicílio. Resistência será considerada traição.”
Andrew estava encostado na parede com os braços cruzados. Seus olhos não desgrudavam da claraboia coberta por um lençol preto, por onde entrava apenas um fiapo de luz azulada da rua. Ao lado dele, Paulo roía a unha com ansiedade. Camila andava em círculos, os cabelos ruivos desgrenhados, e Isadora, sentada em um canto, mantinha o olhar fixo em uma foto no celular: a imagem de Kira, sorrindo em tempos mais tranquilos.
— "Ela sumiu por dois meses e voltou... diferente." A voz de Isadora saiu abafada. — "Mais fria. Mais ausente. Eu achei que fosse trauma. Mas agora tudo aponta pra algo maior."
— "Eles estão atrás dela com um exército inteiro," disse Camila, parando subitamente de andar. — "Mas ninguém diz por quê. Nem a mídia. Nem o governo. É como se Kira tivesse deixado de existir oficialmente."
Paulo bufou, irritado.
— "E agora? Vamos ficar aqui esperando eles nos encontrarem? Porque eles vão. Estamos marcados desde a noite da fuga."
Andrew se afastou da parede. O semblante calmo escondia o furacão dentro dele — a vontade de sair, lutar, gritar. Mas não podia. Ainda não.
— "A gente precisa descobrir o que fizeram com ela. O que ela é agora."
Ele hesitou.
— "E o que nós somos no meio disso."
De volta ao setor industrial, Kira e Número 06 caminhavam entre galpões destruídos, em direção ao último ponto de refúgio que ele conhecia. Mas, ao virarem uma esquina, o som metálico de botas ecoou pelo corredor. Três agentes armados surgiram com rifles em punho, seguidos por um quarto homem encapuzado — um rastreador psíquico.
— KIRA. SUJEITA Nº 03. VOCÊ ESTÁ CERCADA.
O tempo congelou por um instante. As mãos de Kira brilharam com um tom ciano intenso. O ar ficou denso, e a energia vibrava entre ela e os homens. Antes que qualquer um pudesse reagir, Número 06 avançou como um vulto.
O confronto foi brutal. Kira não pensava — apenas reagia. Disparos ecoavam, ricocheteando nas paredes. Um dos agentes foi lançado contra os barris. Outro gritou ao ser atingido por um pulso de energia. Mas era o rastreador o verdadeiro problema. Ele estendeu os braços, tentando invadir sua mente.
— Durma — disse ele.
Mas Kira gritou. E o grito explodiu em uma onda de energia azul que varreu o corredor.
Quando a luz baixou, o rastreador estava desacordado, e os demais fugindo em pânico. Ela ofegava, os olhos brilhando como faróis.
Número 06 se aproximou.
— Agora eles sabem. Vai ficar mais difícil daqui pra frente.
Ela assentiu. Por dentro, uma parte dela ardia. Outra se partia.
— Quem somos nós? — perguntou.
Ele demorou a responder.
— Ainda não sei. Mas... eles nos chamaram de "os acordados".
Em algum lugar profundo, em uma cela de contenção, outros jovens se agitavam em suas camas de aço, como se algo antigo estivesse despertando neles também. Nos corredores frios do Complexo Áureo, os monitores vibravam com os primeiros sinais do despertar.
Era o início de uma nova era.

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