A noite pairava sobre a cidade como um véu denso e silencioso. Em um beco iluminado apenas por luzes trêmulas de postes enferrujados, Kira corria. As solas dos tênis sujos raspavam o asfalto, respiração ofegante, feridas abertas no braço esquerdo e um corte sangrando acima da sobrancelha. Logo atrás, Número 06 mantinha o ritmo, olhos cinzentos atentos ao menor movimento, as cicatrizes metálicas em seu pescoço e braços pulsando em azul, como se sentissem o perigo.
Atrás deles, os primeiros drones começaram a surgir nos céus. As hélices ecoavam como um zumbido distante, mas crescente. Sinais do início do Protocolo Caçador Total.
— Não pare — disse Número 06 em tom calmo, mas firme. — Estamos sendo cercados.
Kira assentiu, o corpo tremendo mais de exaustão emocional do que física. O encontro com o garoto de cabelos brancos tinha mexido com ela de forma estranha, como se ele fosse um espelho distorcido de algo que ela mesma havia esquecido. Algo profundo. Algo... acordado.
USP — CAMPUS CENTRAL
Na Praça do Relógio, sob o frio suave da madrugada, Andrew, Isadora, Paulo e Camila seguiam silenciosos. Haviam notado os cortes de energia em alguns setores da cidade, o comportamento estranho de professores e o sumiço de certos alunos nos últimos dias. O clima era tenso.
— Você sentiu isso? — Isadora interrompeu, parando de andar.
Andrew ergueu os olhos. Seus sentidos estavam cada vez mais apurados desde a última descarga de energia no laboratório onde treinava escondido. Ele sentia algo se aproximando. Algo vivo. Em fuga.
Paulo, com seu jeito desconfiado, puxou o capuz.
— Isso não é paranoia. É padrão. Sempre antes de algo grande acontecer, o ar pesa assim.
Camila sussurrou:
— Olhem pra cima...
Um zumbido percorreu a noite. Drones. O céu antes limpo agora brilhava com luzes artificiais que vasculhavam o campus.
— Isso é militar? — Camila perguntou.
Andrew franziu o cenho.
— Isso é outra coisa. Algo que não foi feito pra ser visto.
ÁREA INDUSTRIAL — LESTE DA CIDADE
Doutor Jota observava as imagens dos drones em tempo real. Os monitores iluminavam o ambiente escuro de sua sala subterrânea. Seu rosto envelhecido e bem alinhado mantinha-se sério, mas seus olhos verde-escuros tremiam levemente.
— Eles vão se encontrar. E quando isso acontecer... nada poderá impedi-los.
A seu lado, Senhor Espectro, com sua armadura negra reflexiva, permaneceu imóvel.
— Está hesitante, Jota? — sua voz ecoava metálica, sem emoção.
— Ele ainda é meu filho — disse o cientista. — E ela... ela é o fio que conecta o passado ao colapso.
— E é por isso que deve agir. Ou eu agirei por você.
USP — EDIFÍCIO ANTIGO DE ENGENHARIA
Andrew correu na direção do som. Algo dentro dele o guiava. Energia vibrava debaixo de sua pele, como se estivesse em ressonância com outra força. Isadora o acompanhava, com Camila e Paulo logo atrás.
Foi quando a parede explodiu.
Lajes e poeira voaram, e do meio da fumaça, dois corpos surgiram: Kira e Número 06, em fuga. Ela estava ferida, as mãos envoltas em energia azulada. Ele, atento, com os olhos cinzentos analisando tudo ao redor como uma máquina viva.
— Fiquem onde estão! — gritou uma voz eletrônica.
Os drones desceram. Armas foram armadas.
Andrew se colocou à frente, instintivamente. Seus olhos brilharam em tom verde — e dois feixes concussivos dispararam, destruindo os dois drones mais próximos.
— Eles estão com a gente!
Kira e 06 se entreolharam. Era a primeira vez que alguém dizia aquilo... em voz alta.
— Camila, Isadora, cobertura! — Andrew gritou.
Camila puxou Paulo para trás de uma pilastra enquanto Isadora tentava usar uma tampa de lixeira metálica como escudo improvisado. Não tinham poderes, mas estavam decididos a ajudar.
06 ergueu o braço e disparou uma onda sônica que destruiu três drones.
Kira gritou e lançou uma esfera de pura força neural contra os destroços que vinham em queda, despedaçando-os no ar.
— Quem... são vocês? — perguntou Andrew, tentando entender.
— Eu sou Kira... e ele é 06. Fomos... acordados.
— Por quem?
— Por eles.
O chão tremeu. Um som gutural ecoou das sombras. Uma nova unidade de ataque, maior, blindada, surgiu entre os edifícios.
— TEMOS QUE SAIR DAQUI! — berrou Paulo.
06 olhou Andrew nos olhos.
— Você pode nos tirar daqui?
Andrew hesitou. Depois assentiu.
— Me sigam.
ESCOLA ABANDONADA — ZONA SUL
Meia hora depois. A base improvisada do grupo servia como abrigo. Enquanto Camila cuidava dos ferimentos de Kira, Andrew e 06 se encaravam. Uma tensão pairava no ar.
— Você é diferente — disse 06. — Como nós. Mas não foi “acordado” do mesmo jeito.
Andrew ergueu uma sobrancelha.
— Do que você está falando?
— Há outros como nós. Dormindo. Escondidos. Controlados. Mas... algo maior está vindo.
Kira, sentada num colchão rasgado, murmurou:
— É como se tudo tivesse sido um teste até agora.
Isadora perguntou:
— Vocês são experimento militar?
06 respondeu com frieza:
— Somos erros que sobreviveram.
Andrew apertou os punhos.
— Então vamos fazer algo com esse erro.
Do lado de fora, uma câmera escondida na parede captava tudo. A imagem era transmitida em tempo real até os olhos atentos de Doutor Jota.
Ele fechou os olhos. Pela primeira vez em muitos anos, sussurrou para si mesmo:
— Me perdoe, Andrew...

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