ESCOLA ABANDONADA — ZONA SUL
A chuva fina tamborilava no telhado de zinco, criando um som constante, quase hipnótico. O interior da escola, embora precário, parecia mais silencioso do que nunca.
Kira estava sentada contra a parede, com um cobertor velho sobre os ombros. As feridas em seu rosto começavam a cicatrizar lentamente, mas seus olhos... carregavam algo novo. Algo acordado.
Andrew estava de pé, braços cruzados, observando. Isadora e Camila estavam por perto, e Paulo tentava sintonizar um rádio antigo, frustrado pela falta de sinal.
— Eu me lembro de... pedaços — começou Kira, quebrando o silêncio. — Havia um quarto branco. Sempre branco. Sem janelas. Eu estava presa. Mas não era sozinha... haviam outras crianças. Algumas sumiam. Outras... gritavam até não ter mais voz.
Isadora aproximou-se devagar, sentando ao lado dela.
— Eles fizeram testes com você?
Kira assentiu, os olhos fixos em algo distante.
— Eles nos chamavam de “sementes”. Como se fôssemos... germes de algo maior. Eu só me lembro do nome da cela: Kira-12B.
Andrew se aproximou. O nome causava uma estranha reação nele. Como se aquela palavra puxasse memórias que ele nunca viveu.
— Você se lembra de quem fez isso?
Kira hesitou.
— Havia um homem. Sempre de preto. A pele parecia... sintética. Os olhos... sem alma. Chamavam ele de Senhor Espectro. Ele sorria quando alguém chorava.
Número Seis, encostado na porta, desviou o olhar.
— Eu também o vi. Mas ao contrário dela... eu obedeci.
Todos se viraram para ele. Pela primeira vez, o homem de olhar mecânico parecia... humano.
— Eu fui criado para caçar os outros. Era parte do Projeto Dominus. A diferença é que algo deu errado comigo. Ou certo. Eu sonhei. E nos sonhos... eu era livre.
Andrew o encarou, surpreso.
— Você se lembra do seu nome?
Número Seis olhou para o próprio reflexo na vidraça rachada. A chuva do lado de fora fazia parecer que ele chorava por dentro.
— Sim. Samuel. Meu nome era Samuel.
BASE DO DOMÍNIO — SETOR OMEGA
A cidade vista do alto parecia um circuito prestes a queimar. Torres de transmissão tremiam com oscilações de energia. Estações de controle começaram a falhar. Os drones pairavam em silêncio.
No centro de uma sala escura, Senhor Espectro observava tudo. A máscara negra cobria seu rosto como uma segunda pele. Ao seu lado, cinco oficiais permaneciam imóveis, à espera de ordens.
Ele girou lentamente o anel metálico no dedo. Uma luz vermelha brilhou nos painéis.
— O tempo da dúvida acabou. Ativar Protocolo Final.
— Senhor, isso significa... — hesitou um dos oficiais.
— Significa que a cidade vai gritar. E quando gritar... nós saberemos quem são os acordados.
Botões foram pressionados. Em segundos, zonas da cidade mergulharam em blackout total. O trânsito parou. Hospitais desligaram. Satélites perderam sinal. Em menos de dois minutos, a cidade entrou em colapso.
ESCOLA ABANDONADA — INSTANTES DEPOIS
A luz apagou-se num estalo. O rádio de Paulo emitiu um ruído agudo antes de morrer. O chão tremeu. Sons de explosões vieram da Zona Norte.
— O que está acontecendo?! — gritou Camila, se levantando de súbito.
— Isso não é só um apagão — disse Andrew. — Isso é um ataque.
Samuel ergueu o olhar. Seus olhos cinzentos começaram a brilhar em azul intenso.
— É o Protocolo Final. Espectro começou a caçada. Ele quer forçar os acordados a reagirem. Mostrar-se é morrer... mas se esconder é inútil.
Kira apertou os punhos.
— Ele quer nos queimar... como lixo.
Andrew correu até a entrada, olhando para o horizonte da cidade. Colunas de fumaça já subiam. Sirenes ecoavam. A cidade de São Paulo não era mais uma metrópole. Era um campo de caça.
Foi quando algo apitou em seu bolso. O pequeno aparelho preso à cintura piscava em vermelho.
— Isso... isso é do laboratório — murmurou Andrew.
— O que é? — perguntou Isadora.
Andrew franziu o cenho.
— É um alerta de emergência. Mas vem de um canal que... nem deveria existir.
Antes que pudesse reagir, um raio cortou o céu e atingiu o topo de um edifício próximo. A explosão destruiu as janelas e lançou destroços por todo lado. Uma torre de comunicação foi derrubada.
Todos se abaixaram, exceto Andrew, que ficou paralisado. A vibração que sentia no peito... era familiar.
E então, uma voz surgiu em sua mente. Clara. Familiar.
— “Andrew... não tenha medo. Confie em si. Eu estou com você.”
Ele cambaleou para trás.
— O que foi isso? — perguntou Camila.
Samuel avançou dois passos.
— Estão tentando rastreá-lo. Você emitiu energia... eles vão vir por você.
Andrew ergueu os olhos. Por um segundo, viu uma sombra nas nuvens. Uma nave não identificável, flutuando sobre a cidade, camuflada. Apenas ele a viu.
E em uma sala escura, longe dali, o Doutor Jota assistia a tudo pelas câmeras.
— Não... ele não pode enfrentar isso agora.
Girou a chave de segurança.
— Ativar plano de contenção 09. Protejam o alvo Andrew Menning a todo custo.
Um robô-tático saiu de uma cápsula metálica. Uma mensagem piscava na tela:
OBJETIVO: PRESERVAR O PROTOGENE.
Jota recostou-se na cadeira. A voz do Senhor Espectro ainda ecoava em sua mente.
— “Você hesita, velho. Isso vai te destruir.”
E ele, cansado, sussurrou:
— Ele é meu filho... e não vai morrer por sua guerra.

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